30 maio 2021

Jolly Roger


 — Calem a boca, seus tolos! — O grande homem berrou e bateu na mesa da taverna encerrando a discussão da dupla de marujos que, agora, mantinha os olhos fixos no grandalhão que até pouco tempo roncava enquanto seus dois companheiros de mar e velas discutiam sobre quem foi o mais terrível Capitão Pirata a navegar pelos Sete Mares.

— O Pirata mais terrível não foi Flint, Hook ou mesmo Thatch — continuou o homem como se o olhar de espanto da dupla e de toda a taverna não significasse nada. — Esse título só pode ser dado ao único pirata da Velha Irmandade que ainda navega por essas águas…

— 'Irmandade'? — Interrompeu um dos marujos com sotaque espanhol — Essa confraria de bucaneiros foi destruída há mais de 70 anos!

— O garoto fez seu dever de casa — zombou o homem — A Confraria foi destruída, é verdade, mas nenhuma marinha é capaz de derrotar o Capitão Jolly Roger!

— Digo pois que Jolly Roger é uma lenda, uma história para assustar donzelas e grumetes e nada mais — protestou o outro marujo, com um lenço cobrindo a cereca. — Estamos falando de Capitães de verdade, meu caro

— Quem foi esse um, afinal?

— Já lhe conto, jovem. Só um instante — O grandalhão pigarreou e falou mais alto ainda — TABERNEIRA! Histórias pedem vinho, Traga uma garrafa

Assim que a garrafa foi trazida, o homem esvaziou a metade em um único gole, pediu outra e começou:

Depois de vários anos de guerra entre frotas piratas, e com as companhias independentes e marinhas de cada país tornando-se cada vez mais poderosas, um grupo formado pelos mais influentes Capitães Piratas decidiu se unir formando então a Irmandade, cujo único propósito era evitar a extinção dos Ratos do mar, Bucaneiros e Mandriões.

Dentre os Capitães estava o temível Jolly Roger, o Capitão do Kraken era conhecido por não fazer prisioneiros nem tomar navios para uma frota como a maioria fazia. Ele perseguia, rendia a tripulação, mutilava, violentava e ateava fogo ao navio tomado.

Mesmo antes da fundação da Irmandade houveram Capitães e Almirantes que lutaram pela sua captura ou morte, mas todos acabavam do mesmo modo: queimados em seus navios. Surgiu assim a lenda de que esta invencibilidade só poderia ser obra de algum pacto maligno. Tanto que, quando a Irmandade caiu pela força das Marinhas Unidas, o nefasto capitão saiu ileso.

— Certo, certo — Interrompeu o espanhol — O tal Jolly Roger era um capitão extremamente hábil e um cara cruel. Como é possível ele estar navegando ainda hoje, tanto tempo depois?

— Ah! Os jovens e sua impaciência… escute o resto, garoto.

Certa noite, uns vinte anos depois de todos os Capitães da Velha Irmandade já estarem mortos ou presos e o próprio Jolly Roger já era, então um homem de 50 anos. O mar estava calmo e a lua cheia, indiferentes às várias mortes causadas naquela mesma manhã, a tripulação do velho Kraken dormia tranquila quando …

— DE PÉ, SEU BANDO DE BARATAS CASCUDAS! DE PÉ! — O Capitão gritava fazendo os homens caírem de suas redes: — O Kraken precisa ir para o leste, imediatamente!

Obedientes e temerosos do castigo por insubordinação, os homens assumiram seus postos e o navio partiu a todo pano na direção indicada pelo Pirata Louco. Apenas os mais antigos marujos a serviço de Roger sabiam o que aquela atitude significava e para onde estavam indo.

Há um ponto perdido no meio dos oceanos onde há um pequeno arquipélago, na maior das ilhas há uma densa floresta e lá mora uma mulher conhecida como A Bruxa do Mar

Navegaram a noite inteira, descansaram ao alvorecer e partiram novamente ao crepúsculo, pois usavam as estrelas como guia. Ao raiar do terceiro dia, o Kraken aportou numa ilha de praias brancas e floresta fechada. 

Apenas três homens seguiram floresta adentro: O Capitão, seu Imediato e o mais jovem dentre os marujos. Após um dia inteiro de caminhada eles chegaram a uma árvore antiga com tronco grosso e copa alta. Dentre os galhos, alguém atento perceberia uma série de plataformas de madeira, claro, firmes como se fizessem parte da própria árvore.

Os homens pararam próximo da árvore sem encostar nela e, em silêncio, esperaram. Até que uma voz feminina poderosa disse algumas palavras de ordem e os galhos desceram ao solo e levaram os piratas à presença da Bruxa do Mar.

— Ora, ora…— disse a Bruxa, sentada numa cadeira acolchoada e abaixando um velho pergaminho — Que maus ventos trazem o Capitão Roger à minha ilha?

— Minha cara, Circe. Vim de longe para, humildemente, pedir conselhos a uma inteligente e nobre mulher. E como amostra de boa fé trago uma oferenda. Com um gesto, Roger, fez um sinal e o Imediato empurrou o marujo, um jovem de apenas dezenove anos, que tropeçou na direção da feiticeira.

Com um simples gesto de mão a bela mulher fez o jovem ficar paralizado, ficou de pé e observou-o da cabeça aos pés para, então, abrir um sorriso.

— Gostei deste. Vejamos o que farei com você… já sei! Com um gesto largo das duas mãos, Circe fez o jovem ficar de quatro, diminuir e transformar-se num cão.

O cachorro latiu e rosnou para a feiticeira que, com apenas um olhar, fê-lo calar e sentar-se.

— Passadas as formalidades — Circe sentou novamente e apontou duas cadeiras a seus convidados — Me diga, Roger: que demônio você irritou dessa vez?

— Antes fosse um demônio, minha cara...

Resumidamente o que aconteceu foi: O capitão pestanejava sobre mapas em sua cabine, quando sente uma presença no ambiente. Ao virar dá de frente com uma bela dama pálida, de olhos frios e lábios vermelhos vestida de cetim preto: a Morte. 

Para a sua sorte do maldito Roger, a Dama estava de bom humor naquela noite e aceitou um acordo no qual ela daria para o Velho pirata o tempo que ele precisasse desde que ele não dormisse, nem mesmo que fechasse os olhos por muito tempo.

Assim que ela deixou o recinto, o capitão partiu a todo pano para encontrar com Circe, pois somente a antiga bruxa poderia tirar o nome dele da lista que a Morte usava.

A Bruxa da Ilha pensou um pouco e disse ao pirata que havia um meio, mas este seria doloroso e poderia haver consequências. O capitão desesperado, topou.

O ritual foi feito da seguinte forma: a Bruxa cortou a mão dominante de Jolly Roger e transformou-a em um corvo e nela inseriu a alma do pirata. Desse modo, o corpo de Roger poderia descansar sem temer a Dama de Cetim, pois não haveria alma para ela devorar.

Na manhã seguinte, os marujos viram espantados o seu Capitão voltar a bordo com o Imediato, com um inseparável corvo no ombro e sem uma das mãos, que logo foi substituída por um gancho de ferro.

Com o tempo pirata louco começou a notar que não sentia mais fome ou sede e o único prazer que sentia era aquele ao causar dor. Desde então, Jolly Roger, um corpo seco e sem alma, navega mutilando e queimando embarcações. Seu desejo por ouro e prazeres carnais foi substituído pelo prazer de devorar outras almas.

— Bela história, Bradley! — o homem careca puxou umas tímidas palmas da Taverna enquanto o jovem espanhol tentava assimilar o que acabara de ouvir.

— É realmente uma boa história — disse o espanhol depois de um tempo — Mas chego a conclusão de que não passa disso. Histórias. Não há como você saber dos detalhes se apenas a bruxa, o capitão e seu Imediato estavam lá. E você não parece ser nenhum dos três.

O careca e o grande homem começaram a rir, mas quando o jovem riu também foi tirado do chão e viu-se cara a cara com Bradley.

— Vou te falar uma coisa, seu moleque sabichão: Blackdog Bradley não mente! Puxo o espanhol mais perto de si e sussurrou: — Ser escravo de uma bela bruxa tem lá suas vantagens.

Bradley deu, então, uma cabeçada no jovem que caiu desacordado e gritou:

— TABERNEIRA!? MAIS VINHO!


28 dezembro 2020

Seu Noel


O mês de dezembro se iniciava, e com ele o bairro do Retiro Natal entrava em festa: a maioria das casas recebia uma demão de tinta, enquanto outras recebiam reparos. No mais tardar dia vinte, todas as moradas estavam bonitas, iluminadas e enfeitadas para o Natal. O responsável pela mudança no bairro, outrora conhecido por ser violento, era seu líder comunitário: um homem de uns cinquenta anos, era o dono da quitanda da esquina, que distribuía bombons na Páscoa e no dia de Cosme e Damião, presentes e cestas básicas no natal e era conhecido por todos como Seu Noel.

A sua esposa, Dona Joana, não ficava para trás, era enfermeira-chefe no Hospital Central e dava palestras sobre saúde feminina na comunidade. Engana-se, porém quem pensa que o S. Noel, principalmente, sempre foi esse homem gentil que usava uma bengala ao caminhar.

Tudo mudou depois do incêndio.

Há muito tempo, quando a Dona Joana era a “Jo”, estudante de enfermagem e o Seu Noel era um servidor público que gostava de ser chamado de “Silva”; eles alugaram uma casa no Retiro Natal.

O casal estava morando junto já havia seis meses e as reclamações já começavam, principalmente, da parte dele ao dizer que  Jo não lhe dava a devida atenção, nem parava em casa. Isso quando a jovem estava estagiando e pegando o penúltimo período da faculdade.

Certo dia de dezembro, Jo relembra Silva que, na quarta-feira, ela terá um Congresso numa cidade próxima e se ausentará por uns dias, mas voltaria a tempo do Natal. Ele reclama, mas vê a oportunidade para sair e curtir com os colegas do departamento. O único pedido que a esposa faz é para ele montar a árvore de Natal da sua mãe que estava no armário.

Ela sai para estudar, ele sai pra curtir. Quando ela voltou na noite do dia 23, ficou horrorizada com a decoração natalina do seu marido: Silva havia moldado a tradicional árvore da esposa como se fosse um dinossauro, um Godzilla que soltava fumaça pela boca. A briga foi feia e, pela primeira vez, era a Jo quem gritava com o marido. Palavras e palavrões foram ditos e o Silva ficou sozinho em casa com o seu Godzilla no natal.

O sol do dia 24 raiou e se pôs, e nada do Silva pedir desculpas a sua esposa que foi para casa de uma amiga. Quando a lua surgiu, ele pensou em sair, mas não o fez. Embebedou-se em casa; no meio do caos da bebida arrependeu-se e pensou em ligar pedindo perdão, mas não sabia o número da casa da amiga. Chorou, e antes da meia-noite já estava apagado no sofá.

Na madrugada sente o ar lhe faltar e um peso de 100 quilos no peito. Ao abrir os olhos depara-se com uma criatura peluda, grande como um homem, com chifres de bode, orelhas pontudas e dentes afiados. Silva quis gritar, mas não houve som, e tampouco conseguia se mexer quando a criatura pôs uma das mãos com garras enormes na sua garganta e disse com uma voz rouca: “Não zombe das tradições!”.  A criatura fechou a mão na garganta do homem e o ar, que lhe era excesso, escapou-lhe dos pulmões e desmaiou.

Silva despertou e tossiu demasiadamente, sua árvore/Godzilla estava em chamas e uma fumaça preta inundava o ambiente. Sua cabeça latejava, seu peito ardia e suas pernas falharam, mas ele tentava chegar às cegas até a porta da rua. As chamas se espalhavam pela sala e o homem desorientado viu-se de frente a uma janela de vidro; ele pegou um banquinho de madeira que usou para quebrar o vidro. Pulou.

E caiu com o todo peso do corpo em um pé, que torceu. Levantou-se e seguiu mancando sem tirar os olhos da casa em chamas e não viu os faróis.

Quando Silva abriu os olhos tudo era luz, estava tão claro que ele pensou estar no céu, mas a dor lhe trouxe de volta à Terra. Estava numa cama de hospital com pinos de metal que mantinham os ossos da sua perna alinhados, seu conforto veio ao perceber que era sua enfermeira favorita quem estava ao seu lado.

A recuperação foi difícil: depois de alguns meses deitado teve que reaprender a andar num processo lento e doloroso, e pouco a pouco as coisas foram se ajeitando. A casa, por exemplo, não foi destruída, pois o fogo consumiu apenas a sala; Jo precisou trancar a faculdade por um período para cuidar do marido, mas formou-se logo depois e sua experiência em reabilitação foi um diferencial para conseguir um bom emprego.

Dizem que um encontro com a Morte muda a vida das pessoas e com o Silva não foi diferente, pois agora ele era um bom marido e um bom vizinho que fazia questão de ajudar o próximo, principalmente na época do natal. Adotou a bengala como parceira de caminhada e voltou a usar seu nome de batismo: Noel.

Depois disso, quando eram perguntados sobre o por quê de tanta preocupação com a comunidade, principalmente no natal, a resposta podia variar um pouco, mas para seus amigos mais próximos diziam: “Fomos visitados pelo Espírito do Natal”.